sábado, 7 de março de 2015

Pizza. O nosso natal acabou em pizza, literalmente.
[E essa história eu preciso contar que é pra ver se ela volta a me cutucar todo dia.]
Combinamos durante dias, talvez semanas, com todo o detalhe e eletricidade a que um smartphone na mão hoje nos condena, o que teríamos na ceia de natal.
[Te localizo: era a confraternização da minha adorável "irmandade de vênus", um grupo de mulheres que há quatro anos se reúne ao redor dos livros.]
Surgiram então as ofertas do pernil, do tender, farofa, salpicão, entradinhas, sobremesa, arroz com passa.
[Arroz com passas, guarde esse nome - dele foi toda a culpa.]
A manhã do meio da semana comia solta quando alguém perguntou como se fazia o arroz com passas.
[A dúvida era se podia fazer o arroz normal - na panela de arroz, por certo - e depois colocava as passas ou se as passas já deveriam ser cozinhadas com o arroz.]
Perguntinha simples que fez desabar um reino.
[O reino do ideal feminino.]
Quer dizer, desabado esse reino já está faz tempo, mas a gente, mulheres em pleno verão de 2015, vivemos ainda precisando ser relembradas e libertadas de novo e de novo e de novo. Nos concebemos tão livres, e não é que não nos tornamos, mas essa liberdade anda falseada demais: se a prisão de antes era a da falta de possibilidades, hoje é a possibilidade de tudo que nos encarcera.
[Nesse reino, o mais de mentirinha que existe, contam que à rainha morta se seguiu mais que depressa uma rainha posta: a primeira não podia fazer nada; a segunda queria fazer tudo. A primeira morreu de tristeza; a segunda anda louca.]
Não é achar que o problema é o cardápio cheio. Deusulivre minimizar um centímetro que seja do caminho aberto a marretadas sangrentas por todas as Virgínias, Simones, Chiquinhas, Leilas, e tantas outras mulheres, famosas e anônimas, corajosas além do adjetivo, que se negaram a ser do tamanho que queriam para elas.
[A rainha louca, apesar de igualmente sem paz, se diverte como a outra nem sonhava.]
O problema é que o reino do ideal ainda dita muito a pauta e a pauta agora é a da supermulher - o que nos deixa aqui tentando entrar na fôrma (ou não sair), tão malditamente aprisionadas quanto antes.
Assim que a pizza do nosso encontro foi, ali, minusculamente e entre nós poucas por um momento, verdadeiros sutiãs em praça sendo de novo queimados, símbolo de que, depois de ganhar as asas de presente da história, talvez seja essa a maior missão da nossa geração de mulheres: deixar às próximas, junto às asas, também a leveza.
[Não só a maluquice aflige à rainha louca; mas, cá pra nós, seus quilos já passaram dos três dígitos.]
Pois naquela noite a irmandade se enlevou. É que à pergunta do arroz se seguiu uma outra da amiga que teria que levar o tender e dizia estar com problemas de logística porque iria para o encontro direto do trabalho (depois de driblar sabe-se lá o que mais) e aí como assar o diabo do porquinho?
A anfitriã, que nesse momento sacudia um filho em cada perna enquanto arrumava a mesa da ceia e pensava no seu provavelmente terrível dia de trabalho-véspera-de-recesso, já quase sem ar, aguentou não e disparou então com os dedos de manicure vencida: "que tal não ter mais ceia e a gente pedir uma pizza?"
O que seria respondido não era óbvio. E foi incrível. O assassinato coletivo da mulher-pode-tudo foi rápido, indolor e inodoro. Em segundos, pipocaram vários "isso!", "ótimo!", "ok", "boa ideia", no meio de muitos "kkkk" e emojis gargalhando e chorando de rir.
O ápice das prendas femininas - a ceia de Natal - seria mais que abortada, seria esculacha, tripudiada sem dó nem piedade. Por que? Porque não demos conta. Não damos. E tudo bem.
A noite veio e, sem tender, sem arroz, sem farofa, sem receita, sem obrigação, mas com a respiração em dia, lá fomos nós botar na roda o excelente "Festa da Insignificância" de Kundera, celebrar, beber (claro que do vinho ninguém abriu mão), dançar, chorar de tudo, rir de nada, declamar nossas poesias e... comer pizza, que aliás, santa Valentina, a de beringela estava um escândalo!

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Memória de Elefante

A memória trai; nós traímos a memória. Inventamos fragmentos de memória; história imaginada. Eu só lembro da morte da Elis; do Rafa derrubando as minhas panelinhas; da brincadeira sozinha e solitária no quintal de casa; da minha avó dando tchau lá de cima do prédio; das roupas de lã; do bigode do meu pai; do charuto e do pincel; da minha melancolia; da minha alegria infantil; do veraneio interminável; dos peixes presos na rede; do cheiro de maresia; de rasgar a blusa do Sérgio; de dançar em festivais que ninguém estava muito a fim de ir; da professora de piano escrota; de olhar para o céu; de gostar das aulas do professor de história; de encenar Chico; de encontrar e perder pessoas; de não dar conta de muita coisa; de bancar outras que eu achava que não ia dar conta; de ter medo de errar; de não saber lidar com o acerto. 
Memória é isso? O que eu inventei? O que eu fui induzida a inventar por causa da memória alheia?

Em "O Sentido de um fim", de Julian Barnes, a memória é a personagem principal. Tony Webster deixou a vida acontecer, foi espectador dos dias, meses, anos que corriam. Faz um balanço cruel: nem ganhou nem perdeu. Até que recebe a noticia de uma inusitada herança: o diário de um amigo de infância, Adrian Finn, que havia se suicidado décadas atrás.
A notícia o leva de volta ao passado, especialmente ao encontro de Veronica, sua primeira namorada que o deixou para ficar com Adrian. 
Afinal, como era Veronica? Uma menina sem sal que o ajudou a passar tempo? Ou uma mulher que fez aflorar os seus sentimentos mais cruéis? As duas? Ou essa é a Veronica construída pela sua memória? 
Barnes é inglês na narrativa. Há comedimentos, não há espaço para sentimentalismos. Uma equação matemática aumenta o enigma; uma carta dura e perversa revela que a memória é manipulável. 
O testamento da mãe de Veronica faz Tony encarar fatos da sua vida apagados convenientemente da sua memória. A memória é seletiva, possui instinto de sobrevivência. A onda de memórias e acontecimentos que arrebatam esse homem de 60 anos - que não esperava mais nada da sua vida - afloram sentimentos de euforia e remorso. Um cheiro de ovo frito; uma noite na praia. Há inquietude.  

Numa noite fria de agosto no Senhoritas Café a Irmandade conversou sobre o livro de Barnes. Do livro derivou reflexões sobre memória, não-memória, relação mãe e filha, a adolescência como atenuante, culpa, remorso, traição, o grupo. Houve inquietude. 

sábado, 19 de abril de 2014

Parte II - Marçal faz cinema

A foto ampliada está no meio da Bienal. Marçal Aquino está fazendo "carão", brincamos entre nós. Marçal estará na Bienal, celeuma entre nós. A leitura mais recente da Irmandade é dele. Ainda estamos extasiadas com o livro Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios. Queremos conhecê-lo. A palestra num horário insólito em pleno sábado de aleluia não nos intimidou. O tema "Adaptações Literárias para o Cinema" nos pareceu promissor, apesar de não tanto poético. As representantes da Irmandade sentamos na segunda fileira para não dar tanta pinta. Marçal não se sentou na poltrona em cima do palco. Gesticulador - e mais alto do que imaginávamos - aproximou-se do público e falou como se tivesse num boteco. Os olhos brilharam o tempo inteiro, coisa de gente que é apaixonada pelo que faz.


Apesar de roteirista renomado, tanto no cinema quanto na televisão, Marçal confessa que sua grande paixão é a literatura. Não há como compará-la à missão do roteirista que é essencialmente técnica e contingenciada. Há filmes que superam suas versões em livro? Marçal não conseguiu pensar em nenhum, pelo contrário. Há boas adaptações - vide Lavoura Arcaica, A Insustentável Leveza do Ser... - mas não se pode dizer que superam as obras literárias.


Voltando à sua grande paixão, Aquino explica que o processo de escrever é pura descoberta. O escritor não sabe o que vai acontecer com a sua obra. Ainda adepto ao caderno, Marçal observa o mundo para descobrir a cena que vai se encaixar no livro que está à sua espera. Segue um casal que briga no meio da rua e inventa o final sentado em sua casa. Inventa. Escrever é imaginar.


Contudo, não dá para ser escritor nem roteirista sem ser um leitor voraz. Marçal lamenta a ausência da leitura na vida dos brasileiros e ironiza: como a tiragem média dos livros no país é de três mil exemplares, só temos três mil leitores. E radicaliza: só com eles que devemos nos relacionar. Ele nos convida então a sermos responsáveis por introduzir os outros ao nosso redor no mundo da literatura: filhos, vizinhos, amigos... Esperamos que você que esteja lendo esse blog seja tomado pela vontade de ler. Leia Marçal.


P.S.: Camila Pitanga - "o papel da vida dela" - também não é a Lavínia dele.

Mariana Carvalho

A Irmandade de Vênus na II Bienal Brasil do Livro e da Leitura - Parte I - Nosso encontro com Mia Couto e Gonçalo Tavares

A notícia de que Mia Couto participaria da Bienal do Livro em Brasília nos deixou alviçareiras, afinal, uma de suas obras, A Confissão da Leoa, foi objeto de um encontro da Irmandade que marcou o ano de 2013. A abordagem da opressão feminina, ilustrada por frases poéticas e prosa envolvente, em uma África permeada por caçadores, leões, violência sexual, paixão e loucura, nos tocou profundamente. A atmosfera perfeita para a discussão em grupo foi atingida com a reveleção da Ana Cláudia: seu tio foi um caçador na África e seu pai havia lutado na guerra da Angola, no lado dos portugueses. Mas, bem, essa é uma outra história, que merece um texto a parte, para transmitir todos os sentimentos e questionamentos que essa obra nos despertou. Esse parêntese é só para ilustrar que a vinda de Mia Couto a nossa Brasília, assim, no ladinho de nossas moradas, de fato nos deixou em rebuliço.

Pena que a Bienal aconteceu em um feriadão, com a Irmandade em peso viajando, então, nós, que ficamos na terrinha, fomos conferir o debate: “Tradição e atualidade da literatura de língua portuguesa”, com a participação do nosso querido Mia Couto e de Gonçalo Tavares, um autor português, confessamos, até então um ilustre desconhecido para nós. O tema do debate dava a impressão de que assistiríamos a uma aula sobre a história de literatura de língua portuguesa e as tendências das escolas da atualidade, ou seja, puro academicismo. Mas a oportunidade de ver, logo ali, o nosso grande autor, e a esperança de conseguir um autógrafo, já era motivação suficiente para sentar no auditório lotado de pessoas como nós: livro embaixo do braço e olhares curiosos.

Conta-se uma história sobre uma fila de carroças que trafegavam em uma estrada. Em determinado ponto o caminho se bifurca, as carroças viram à esquerda, e todas as outras que seguem atrás, cumprem a mesma jornada. O escritor é uma carroça que decide virar à direita. Ele pode e deve fazer diferente, porém deve ter a consciência ancestral do caminho seguido pelas carroças que o antecederam. Virar à direita, sabendo que todas as outras anteriores viararam à esquerda é diferente de virar à direita sem ter esse conhecimento. Assim deve ser o escritor, com um pé no passado, os olhos no futuro e um profundo pertencimento ao tempo presente. Com essa alegoria, Gonçalo Tavares iniciou sua fala sobre tradição e atualidade da literatura, nos deixando encantadas e curiosas para saber mais sobre esse autor. Mia Couto adicionou uma pitada poética à discussão: o pertencimento do autor a sua cultura e tradição traduz-se por duas palavras: raízes e asas.

E o debate fluiu leve, descontraído, como uma conversa entre amigos. O ato de escrever é quase visceral, não há como transformá-lo em um jogo de técnicas e regras. Mia, quando escreve, é dominado por vozes e aparições. Ele não cria personagens, ele é esse personagem. Quando fala sobre uma figura feminina, está traduzindo sua própria alma feminina. Ele é essa mulher. Gonçalo não redige sobre o que já sabe. O ato de escrever é um descobrir. O conto que já está pronto na memória jamais será escrito.
A obra de Mia Couto é toda sobre ele mesmo, até quando escreve sobre o que não viveu. Mia revelou que não conheceu seus avós e que a presença frequente dessas figuras no centro de seus romances tem tudo a ver com o fato de precisar dar vida aos avós que não teve. Em A Confissão da Leoa, o único consolo de Mariamar vem de seu amoroso avô, chamado Adjiru. Os avós são tradicionalmente contadores de histórias. Mia reconta as histórias dos avós que não teve.

Os escritores não são historiadores, mas contadores de histórias. A fala de Gonçalo Tavares veio permeada de histórias que pareciam surgir como por encanto para dar resposta às perguntas da plateia. Contou sobre dois trens que seguiam em direções opostas e, ao passarem por trilhos paralelos, cruzaram-se os olhares de duas pessoas que viajavam em trens diferentes. A força desse olhar foi tão intensa, que fez com que os trens passassem a trafegar na mesma direção, seguindo lado a lado. Assim, o autor ilustrou como deve ser a relação do leitor com o livro, uma atração tão eletrizante entre os olhares do autor e do leitor, que os faça seguir conectados. O leitor não é um telespectador. Ele interage com a obra literária. A sua postura diante de um livro é ativa, questionadora. Ao cabo de uma boa leitura, o peso do livro se transforma em massa corporal de lucidez. A cada 200 gramas de livro, 200 gramas de lucidez para o leitor.

Chegamos ao debate sem saber muito bem em que direção seguiríamos. Rapidamente nosso olhar foi fisgado pela fala poética e inspiradora dos dois escritores. Ao fim, o autógrafo, que não conseguimos, era o que menos importava. Saímos de lá levando algo muito mais valioso: aquele punhado de lucidez que a boa literatura nos traz.

Lenna Daher

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Como tudo começou - O Convite

De: Danielle Martins Silva [mailto:DanielleS@mpdft.gov.br]
Enviada: ter 11/1/2011 20:58
Assunto: Clube do Filme e do Livro: uma proposta de encontro


Queridas,
 
Conversando com minha querida Bia no final do ano passado, ela me falou sobre o círculo de leitura que estava pensando em montar. Achei a idéia genial e decidi "colar", inclusive a convidando para participar deste!! rsrsrsrs
 
Bem, é que eu sempre ficava pensando numa maneira de reunir mulheres com quem tenho imenso prazer de conviver, de conversar, de encontrar de vez em quando (mas cujo convívio mais próximo me faz falta), de ouvir contar histórias, de ver sorrir. Enfim, torno aqui pública a minha bem querência por cada uma de vocês, e pelo feminino em cada uma de vocês, manifestado de forma tão particular que as torna insubstituíveis em um círculo de leitura e compartilhamento de visões de mundo sobre um tema.
 
Pensava, também, sobre uma maneira interessante de nos vincularmos culturalmente, partilhando a vivência de um relato escrito ou filmado. A intenção é que possamos nos encontrar a cada dois meses, ou algo assim, e que cada uma de nós indique, ao longo do tempo, um livro ou filme sobre uma temática que julgar interessante.
 
O que acham da idéia?
 
Beijos
 
Dani

quinta-feira, 27 de março de 2014

As lentes de Cauby, os lábios de Lavínia, o nosso prazer – A sedutora narrativa de Marçal Aquino (Mariana Carvalho)


(Atenção! Contém spoiler)

Fomos fisgadas pelo título. “Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios” não pode ser título de livro ruim. A capa também é de uma delicadeza gostosa. Desenho de pés femininos descalços ao lado de uma câmera fotográfica. Marçal Aquino, o autor. Um senhor de traços brasileiros simples, uma barba espessa, biografia invejável. Tentador. 

Fomos à leitura. Diferente de outras feitas pelo grupo, dessa vez fomos vorazes, comemos e bebemos o livro numa velocidade e intensidade incríveis! Nos apaixonamos, trocamos muitas mensagens sobre as nossas impressões, fizemos declarações de amor à narrativa do autor, ficamos com gosto de quero mais quando finalizamos. Ficamos excitadas – em todas as possíveis interpretações da palavra. 

Mergulhamos no mundo de Cauby, fotógrafo que na descrição do autor não era um cara apaixonante, mas despertou o desejo – e o amor também – de Lavínia. Ah, Lavínia... Ela sim, sujeito e objeto principais da obra. Lavínia não se parecia com Camila Pitanga – atriz que retratou a personagem no cinema. Minha mente a desenhou como uma Paz Vega em “Lucia e o Sexo”. Tesuda essa Lavínia, triste e doente também.  O livro é dedicado a “mujeres como yo no las coneces; las contraes”, a todas as lavínias que estão dentro de nós.  Lavínia é mulher que não se esquece – e nem se quer esquecer;  é mulher de extremos, de “olhos antigos” e tem “cheiro de abismo”. Os homens têm medo dela, mas o fascínio é maior que o pavor. Alguns pagam para ver e o preço é alto. Duvido que algum se arrependa. 

Marçal consegue descrever tão bem cenários, cenas, personagens e sentimentos que a leitura é muito visual. A imagem de Lavínia sendo arrancada das ruas pelo fervoroso pastor, seu posterior marido;  o encontro da mulher com Cauby na loja de Chang; o colunista afetado; a pensão de dona Jane; o amor quase platônico do Careca; a casa incendiada; as pessoas da cidadezinha; o tatu velho; Lavínia encolhida na porta da casa do fotógrafo; a viagem dos dois ao rio; a caixinha que deveria ser quebrada; o estabelecimento psiquiátrico. E o sexo. 

O livro trata de sexo. Sexo salva, sexo condena. Não à toa o livro começa com a frase “O amor é sexualmente transmissível”. Lavínia era bipolar. Às vezes pudica, às vezes Shirley. Louca e enlouquecedora. O pastor viúvo redescobriu o sexo com ela; o fotógrafo virou sua vida do avesso por causa do sexo dela. Lavínia foi abusada sexualmente quando criança, virou puta, casou e traiu. Sexo rege muitas das relações e conexões do livro, mas não só isso. Marçal não deixa que o livro caia nessa vala (quase) comum. 

A redenção está no amor. O autor, para falar de amor, não quis soar pretensioso e criou um personagem, o professor Schianberg, “o mais obscuro dos filósofos do amor”, que era citado ao longo do livro tal como um verdadeiro especialista. Marçal deixa pistas de que o doutor era fruto da sua imaginação, mas parecia tão real que algumas de nós fomos googlá-lo (descobrimos até que houve editora interessada em publicar o especialista no Brasil – ponto para Marçal!). 

Lavínia amou Cauby. Amou a tal ponto que se perdeu. Cauby teve medo, ameaçou fugir, mas descobriu o amor de Lavínia e bancou. Era tarde demais? O grupo se dividiu aqui. Lavínia voltaria do mundo paralelo que os choques elétricos a levaram? Ou nunca mais seria Lavínia, sua essência havia se perdido? 

Cauby tinha esperanças. Ele tinha amor.

terça-feira, 18 de março de 2014

Livro de Boteco: Munro no Beira (Danielle)

Para nos acolher nos debates do surpreendente “O amor de uma boa mulher”, da ganhadora do Nobel de literatura de 2013, Alice Munro, escolhemos o Bar Beirute da Asa Sul onde, entre um quibe e uma cervejinha pudemos nos deleitar em falar sobre as complexidades das mulheres de Alice. Destaque para o momento em que falávamos sobre a vida sexual não vivida da personagem Pauline, do conto “As crianças ficam”, sob o olhar impávido de um garçom incrédulo. Lembrei-me da emblemática frase do filme “O mordomo da Casa Branca”, traduzindo a regra de ouro dos que servem à mesa: “quando você servir, o salão deve parecer vazio”...
O primeiro conto, “O amor de uma boa mulher”, não me cativou. Me pareceu árido e invencível, talvez pelo fato de eu conjugar sua leitura com a do delicioso “Eu receberia as piores notícias de seus lindos lábios”, de Marçal Aquino.  A proximidade do final, associada à revelação de um segredo redentor para dois personagens, trouxe alívio e expectativa de momentos mais fluidos.
O apego foi sendo construído nas páginas seguintes e nas trocas de mensagens entre as integrantes do grupo, que sugeriam os contos de sua preferência. Há uma leniência gentil no grupo sobre impossibilidades recíprocas de conclusão de leituras, reforçada pelo compartilhamento de gostos por trechos, onde cada uma oferece às outras o sabor de suas impressões, facilitando o caminho da leitura. Nesse apanhado, fui colhida pelo “As crianças ficam”. E não estive só.  O arrebatamento de algumas hermanas pela vida previsível de Pauline, mais que pela reviravolta a que ela se propôs, me surpreendeu. Talvez o arrebatamento se explique nem tanto pela aderência aos sentimentos de Pauline, mas pela maior ou menor rejeição às figuras de Brian e Jeffrey, marido e amante, respectivamente. Eu aderi ao sufocamento de Pauline, tão enfaticamente frisado pela hermana Gabriela na frase “um saco amarrado na cabeça” (p. 236), não a Jeffrey.
Talvez não seja possível ser impessoal quando se trata de amores triangulares. Somos compulsoriamente convidados à intimidade das desventuras e aventuras, a torcer por alguém e, o mais emblemático, a buscar um vilão/vilã para a história. Em “As crianças ficam”, é impossível permanecer insensível a Pauline no momento em que se depara com a imperiosa perda do contato com as filhas: “As crianças ficam”, disse Brian. “Você me ouviu, Pauline?”. Um caminhão, mas não apenas um caminhão: um fato triste e imenso vem em sua direção” (p.235). Há vilania consentida em uma perda tão terrível? O “saco na cabeça” ou o “o peso de Mara no quadril, a visão das pegadas de Caitilin no assoalho”? Pauline seria a vilã óbvia, pela negação da maternidade e rejeição ao modelo social de convívio a dois - um casamento tido, pelo “buraco da fechadura” de toda vida a dois, como bom.
Mas como exigir que alguém escolha uma a partir de duas de si mesma? Matar-se ou morrer?
Com ou sem Orfeu, a Eurídice de Munro precisou escolher descer ao inferno: “Uma escolha fluida, a escolha da fantasia, é derramada no chão e endurece instantaneamente: adquiriu seu formato inegável”.