A notícia de que Mia Couto participaria da Bienal do Livro em Brasília nos deixou alviçareiras, afinal, uma de suas obras, A Confissão da Leoa, foi objeto de um encontro da Irmandade que marcou o ano de 2013. A abordagem da opressão feminina, ilustrada por frases poéticas e prosa envolvente, em uma África permeada por caçadores, leões, violência sexual, paixão e loucura, nos tocou profundamente. A atmosfera perfeita para a discussão em grupo foi atingida com a reveleção da Ana Cláudia: seu tio foi um caçador na África e seu pai havia lutado na guerra da Angola, no lado dos portugueses. Mas, bem, essa é uma outra história, que merece um texto a parte, para transmitir todos os sentimentos e questionamentos que essa obra nos despertou. Esse parêntese é só para ilustrar que a vinda de Mia Couto a nossa Brasília, assim, no ladinho de nossas moradas, de fato nos deixou em rebuliço.
Pena que a Bienal aconteceu em um feriadão, com a Irmandade em peso viajando, então, nós, que ficamos na terrinha, fomos conferir o debate: “Tradição e atualidade da literatura de língua portuguesa”, com a participação do nosso querido Mia Couto e de Gonçalo Tavares, um autor português, confessamos, até então um ilustre desconhecido para nós. O tema do debate dava a impressão de que assistiríamos a uma aula sobre a história de literatura de língua portuguesa e as tendências das escolas da atualidade, ou seja, puro academicismo. Mas a oportunidade de ver, logo ali, o nosso grande autor, e a esperança de conseguir um autógrafo, já era motivação suficiente para sentar no auditório lotado de pessoas como nós: livro embaixo do braço e olhares curiosos.
Conta-se uma história sobre uma fila de carroças que trafegavam em uma estrada. Em determinado ponto o caminho se bifurca, as carroças viram à esquerda, e todas as outras que seguem atrás, cumprem a mesma jornada. O escritor é uma carroça que decide virar à direita. Ele pode e deve fazer diferente, porém deve ter a consciência ancestral do caminho seguido pelas carroças que o antecederam. Virar à direita, sabendo que todas as outras anteriores viararam à esquerda é diferente de virar à direita sem ter esse conhecimento. Assim deve ser o escritor, com um pé no passado, os olhos no futuro e um profundo pertencimento ao tempo presente. Com essa alegoria, Gonçalo Tavares iniciou sua fala sobre tradição e atualidade da literatura, nos deixando encantadas e curiosas para saber mais sobre esse autor. Mia Couto adicionou uma pitada poética à discussão: o pertencimento do autor a sua cultura e tradição traduz-se por duas palavras: raízes e asas.
E o debate fluiu leve, descontraído, como uma conversa entre amigos. O ato de escrever é quase visceral, não há como transformá-lo em um jogo de técnicas e regras. Mia, quando escreve, é dominado por vozes e aparições. Ele não cria personagens, ele é esse personagem. Quando fala sobre uma figura feminina, está traduzindo sua própria alma feminina. Ele é essa mulher. Gonçalo não redige sobre o que já sabe. O ato de escrever é um descobrir. O conto que já está pronto na memória jamais será escrito.
A obra de Mia Couto é toda sobre ele mesmo, até quando escreve sobre o que não viveu. Mia revelou que não conheceu seus avós e que a presença frequente dessas figuras no centro de seus romances tem tudo a ver com o fato de precisar dar vida aos avós que não teve. Em A Confissão da Leoa, o único consolo de Mariamar vem de seu amoroso avô, chamado Adjiru. Os avós são tradicionalmente contadores de histórias. Mia reconta as histórias dos avós que não teve.
Os escritores não são historiadores, mas contadores de histórias. A fala de Gonçalo Tavares veio permeada de histórias que pareciam surgir como por encanto para dar resposta às perguntas da plateia. Contou sobre dois trens que seguiam em direções opostas e, ao passarem por trilhos paralelos, cruzaram-se os olhares de duas pessoas que viajavam em trens diferentes. A força desse olhar foi tão intensa, que fez com que os trens passassem a trafegar na mesma direção, seguindo lado a lado. Assim, o autor ilustrou como deve ser a relação do leitor com o livro, uma atração tão eletrizante entre os olhares do autor e do leitor, que os faça seguir conectados. O leitor não é um telespectador. Ele interage com a obra literária. A sua postura diante de um livro é ativa, questionadora. Ao cabo de uma boa leitura, o peso do livro se transforma em massa corporal de lucidez. A cada 200 gramas de livro, 200 gramas de lucidez para o leitor.
Chegamos ao debate sem saber muito bem em que direção seguiríamos. Rapidamente nosso olhar foi fisgado pela fala poética e inspiradora dos dois escritores. Ao fim, o autógrafo, que não conseguimos, era o que menos importava. Saímos de lá levando algo muito mais valioso: aquele punhado de lucidez que a boa literatura nos traz.
Lenna Daher