quinta-feira, 27 de março de 2014

As lentes de Cauby, os lábios de Lavínia, o nosso prazer – A sedutora narrativa de Marçal Aquino (Mariana Carvalho)


(Atenção! Contém spoiler)

Fomos fisgadas pelo título. “Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios” não pode ser título de livro ruim. A capa também é de uma delicadeza gostosa. Desenho de pés femininos descalços ao lado de uma câmera fotográfica. Marçal Aquino, o autor. Um senhor de traços brasileiros simples, uma barba espessa, biografia invejável. Tentador. 

Fomos à leitura. Diferente de outras feitas pelo grupo, dessa vez fomos vorazes, comemos e bebemos o livro numa velocidade e intensidade incríveis! Nos apaixonamos, trocamos muitas mensagens sobre as nossas impressões, fizemos declarações de amor à narrativa do autor, ficamos com gosto de quero mais quando finalizamos. Ficamos excitadas – em todas as possíveis interpretações da palavra. 

Mergulhamos no mundo de Cauby, fotógrafo que na descrição do autor não era um cara apaixonante, mas despertou o desejo – e o amor também – de Lavínia. Ah, Lavínia... Ela sim, sujeito e objeto principais da obra. Lavínia não se parecia com Camila Pitanga – atriz que retratou a personagem no cinema. Minha mente a desenhou como uma Paz Vega em “Lucia e o Sexo”. Tesuda essa Lavínia, triste e doente também.  O livro é dedicado a “mujeres como yo no las coneces; las contraes”, a todas as lavínias que estão dentro de nós.  Lavínia é mulher que não se esquece – e nem se quer esquecer;  é mulher de extremos, de “olhos antigos” e tem “cheiro de abismo”. Os homens têm medo dela, mas o fascínio é maior que o pavor. Alguns pagam para ver e o preço é alto. Duvido que algum se arrependa. 

Marçal consegue descrever tão bem cenários, cenas, personagens e sentimentos que a leitura é muito visual. A imagem de Lavínia sendo arrancada das ruas pelo fervoroso pastor, seu posterior marido;  o encontro da mulher com Cauby na loja de Chang; o colunista afetado; a pensão de dona Jane; o amor quase platônico do Careca; a casa incendiada; as pessoas da cidadezinha; o tatu velho; Lavínia encolhida na porta da casa do fotógrafo; a viagem dos dois ao rio; a caixinha que deveria ser quebrada; o estabelecimento psiquiátrico. E o sexo. 

O livro trata de sexo. Sexo salva, sexo condena. Não à toa o livro começa com a frase “O amor é sexualmente transmissível”. Lavínia era bipolar. Às vezes pudica, às vezes Shirley. Louca e enlouquecedora. O pastor viúvo redescobriu o sexo com ela; o fotógrafo virou sua vida do avesso por causa do sexo dela. Lavínia foi abusada sexualmente quando criança, virou puta, casou e traiu. Sexo rege muitas das relações e conexões do livro, mas não só isso. Marçal não deixa que o livro caia nessa vala (quase) comum. 

A redenção está no amor. O autor, para falar de amor, não quis soar pretensioso e criou um personagem, o professor Schianberg, “o mais obscuro dos filósofos do amor”, que era citado ao longo do livro tal como um verdadeiro especialista. Marçal deixa pistas de que o doutor era fruto da sua imaginação, mas parecia tão real que algumas de nós fomos googlá-lo (descobrimos até que houve editora interessada em publicar o especialista no Brasil – ponto para Marçal!). 

Lavínia amou Cauby. Amou a tal ponto que se perdeu. Cauby teve medo, ameaçou fugir, mas descobriu o amor de Lavínia e bancou. Era tarde demais? O grupo se dividiu aqui. Lavínia voltaria do mundo paralelo que os choques elétricos a levaram? Ou nunca mais seria Lavínia, sua essência havia se perdido? 

Cauby tinha esperanças. Ele tinha amor.

terça-feira, 18 de março de 2014

Livro de Boteco: Munro no Beira (Danielle)

Para nos acolher nos debates do surpreendente “O amor de uma boa mulher”, da ganhadora do Nobel de literatura de 2013, Alice Munro, escolhemos o Bar Beirute da Asa Sul onde, entre um quibe e uma cervejinha pudemos nos deleitar em falar sobre as complexidades das mulheres de Alice. Destaque para o momento em que falávamos sobre a vida sexual não vivida da personagem Pauline, do conto “As crianças ficam”, sob o olhar impávido de um garçom incrédulo. Lembrei-me da emblemática frase do filme “O mordomo da Casa Branca”, traduzindo a regra de ouro dos que servem à mesa: “quando você servir, o salão deve parecer vazio”...
O primeiro conto, “O amor de uma boa mulher”, não me cativou. Me pareceu árido e invencível, talvez pelo fato de eu conjugar sua leitura com a do delicioso “Eu receberia as piores notícias de seus lindos lábios”, de Marçal Aquino.  A proximidade do final, associada à revelação de um segredo redentor para dois personagens, trouxe alívio e expectativa de momentos mais fluidos.
O apego foi sendo construído nas páginas seguintes e nas trocas de mensagens entre as integrantes do grupo, que sugeriam os contos de sua preferência. Há uma leniência gentil no grupo sobre impossibilidades recíprocas de conclusão de leituras, reforçada pelo compartilhamento de gostos por trechos, onde cada uma oferece às outras o sabor de suas impressões, facilitando o caminho da leitura. Nesse apanhado, fui colhida pelo “As crianças ficam”. E não estive só.  O arrebatamento de algumas hermanas pela vida previsível de Pauline, mais que pela reviravolta a que ela se propôs, me surpreendeu. Talvez o arrebatamento se explique nem tanto pela aderência aos sentimentos de Pauline, mas pela maior ou menor rejeição às figuras de Brian e Jeffrey, marido e amante, respectivamente. Eu aderi ao sufocamento de Pauline, tão enfaticamente frisado pela hermana Gabriela na frase “um saco amarrado na cabeça” (p. 236), não a Jeffrey.
Talvez não seja possível ser impessoal quando se trata de amores triangulares. Somos compulsoriamente convidados à intimidade das desventuras e aventuras, a torcer por alguém e, o mais emblemático, a buscar um vilão/vilã para a história. Em “As crianças ficam”, é impossível permanecer insensível a Pauline no momento em que se depara com a imperiosa perda do contato com as filhas: “As crianças ficam”, disse Brian. “Você me ouviu, Pauline?”. Um caminhão, mas não apenas um caminhão: um fato triste e imenso vem em sua direção” (p.235). Há vilania consentida em uma perda tão terrível? O “saco na cabeça” ou o “o peso de Mara no quadril, a visão das pegadas de Caitilin no assoalho”? Pauline seria a vilã óbvia, pela negação da maternidade e rejeição ao modelo social de convívio a dois - um casamento tido, pelo “buraco da fechadura” de toda vida a dois, como bom.
Mas como exigir que alguém escolha uma a partir de duas de si mesma? Matar-se ou morrer?
Com ou sem Orfeu, a Eurídice de Munro precisou escolher descer ao inferno: “Uma escolha fluida, a escolha da fantasia, é derramada no chão e endurece instantaneamente: adquiriu seu formato inegável”.