A memória trai; nós traímos a memória. Inventamos fragmentos de memória; história imaginada. Eu só lembro da morte da Elis; do Rafa derrubando as minhas panelinhas; da brincadeira sozinha e solitária no quintal de casa; da minha avó dando tchau lá de cima do prédio; das roupas de lã; do bigode do meu pai; do charuto e do pincel; da minha melancolia; da minha alegria infantil; do veraneio interminável; dos peixes presos na rede; do cheiro de maresia; de rasgar a blusa do Sérgio; de dançar em festivais que ninguém estava muito a fim de ir; da professora de piano escrota; de olhar para o céu; de gostar das aulas do professor de história; de encenar Chico; de encontrar e perder pessoas; de não dar conta de muita coisa; de bancar outras que eu achava que não ia dar conta; de ter medo de errar; de não saber lidar com o acerto. Memória é isso? O que eu inventei? O que eu fui induzida a inventar por causa da memória alheia?
Em "O Sentido de um fim", de Julian Barnes, a memória é a personagem principal. Tony Webster deixou a vida acontecer, foi espectador dos dias, meses, anos que corriam. Faz um balanço cruel: nem ganhou nem perdeu. Até que recebe a noticia de uma inusitada herança: o diário de um amigo de infância, Adrian Finn, que havia se suicidado décadas atrás. A notícia o leva de volta ao passado, especialmente ao encontro de Veronica, sua primeira namorada que o deixou para ficar com Adrian. Afinal, como era Veronica? Uma menina sem sal que o ajudou a passar tempo? Ou uma mulher que fez aflorar os seus sentimentos mais cruéis? As duas? Ou essa é a Veronica construída pela sua memória? Barnes é inglês na narrativa. Há comedimentos, não há espaço para sentimentalismos. Uma equação matemática aumenta o enigma; uma carta dura e perversa revela que a memória é manipulável. O testamento da mãe de Veronica faz Tony encarar fatos da sua vida apagados convenientemente da sua memória. A memória é seletiva, possui instinto de sobrevivência. A onda de memórias e acontecimentos que arrebatam esse homem de 60 anos - que não esperava mais nada da sua vida - afloram sentimentos de euforia e remorso. Um cheiro de ovo frito; uma noite na praia. Há inquietude.
Numa noite fria de agosto no Senhoritas Café a Irmandade conversou sobre o livro de Barnes. Do livro derivou reflexões sobre memória, não-memória, relação mãe e filha, a adolescência como atenuante, culpa, remorso, traição, o grupo. Houve inquietude.