terça-feira, 18 de março de 2014

Livro de Boteco: Munro no Beira (Danielle)

Para nos acolher nos debates do surpreendente “O amor de uma boa mulher”, da ganhadora do Nobel de literatura de 2013, Alice Munro, escolhemos o Bar Beirute da Asa Sul onde, entre um quibe e uma cervejinha pudemos nos deleitar em falar sobre as complexidades das mulheres de Alice. Destaque para o momento em que falávamos sobre a vida sexual não vivida da personagem Pauline, do conto “As crianças ficam”, sob o olhar impávido de um garçom incrédulo. Lembrei-me da emblemática frase do filme “O mordomo da Casa Branca”, traduzindo a regra de ouro dos que servem à mesa: “quando você servir, o salão deve parecer vazio”...
O primeiro conto, “O amor de uma boa mulher”, não me cativou. Me pareceu árido e invencível, talvez pelo fato de eu conjugar sua leitura com a do delicioso “Eu receberia as piores notícias de seus lindos lábios”, de Marçal Aquino.  A proximidade do final, associada à revelação de um segredo redentor para dois personagens, trouxe alívio e expectativa de momentos mais fluidos.
O apego foi sendo construído nas páginas seguintes e nas trocas de mensagens entre as integrantes do grupo, que sugeriam os contos de sua preferência. Há uma leniência gentil no grupo sobre impossibilidades recíprocas de conclusão de leituras, reforçada pelo compartilhamento de gostos por trechos, onde cada uma oferece às outras o sabor de suas impressões, facilitando o caminho da leitura. Nesse apanhado, fui colhida pelo “As crianças ficam”. E não estive só.  O arrebatamento de algumas hermanas pela vida previsível de Pauline, mais que pela reviravolta a que ela se propôs, me surpreendeu. Talvez o arrebatamento se explique nem tanto pela aderência aos sentimentos de Pauline, mas pela maior ou menor rejeição às figuras de Brian e Jeffrey, marido e amante, respectivamente. Eu aderi ao sufocamento de Pauline, tão enfaticamente frisado pela hermana Gabriela na frase “um saco amarrado na cabeça” (p. 236), não a Jeffrey.
Talvez não seja possível ser impessoal quando se trata de amores triangulares. Somos compulsoriamente convidados à intimidade das desventuras e aventuras, a torcer por alguém e, o mais emblemático, a buscar um vilão/vilã para a história. Em “As crianças ficam”, é impossível permanecer insensível a Pauline no momento em que se depara com a imperiosa perda do contato com as filhas: “As crianças ficam”, disse Brian. “Você me ouviu, Pauline?”. Um caminhão, mas não apenas um caminhão: um fato triste e imenso vem em sua direção” (p.235). Há vilania consentida em uma perda tão terrível? O “saco na cabeça” ou o “o peso de Mara no quadril, a visão das pegadas de Caitilin no assoalho”? Pauline seria a vilã óbvia, pela negação da maternidade e rejeição ao modelo social de convívio a dois - um casamento tido, pelo “buraco da fechadura” de toda vida a dois, como bom.
Mas como exigir que alguém escolha uma a partir de duas de si mesma? Matar-se ou morrer?
Com ou sem Orfeu, a Eurídice de Munro precisou escolher descer ao inferno: “Uma escolha fluida, a escolha da fantasia, é derramada no chão e endurece instantaneamente: adquiriu seu formato inegável”.

2 comentários:

  1. Como são únicos os nossos arrebatamentos pelas leituras escolhidas. Eu não dei muita trela à Pauline - quer dizer, fiquei pensando se ela era covarde ou corajosa... Quem me pegou mesmo foi a mãe/avó de outro conto, q com os netos se meteu numa grande enrascada...

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  2. Aposto que há pequenas armadilhas psicológicas lançadas por Munro em cada um desses contos...e nós somos fisgadas!

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